Eis o Fígado do Mundo. Que a nossa vaidade de julgar seja tão ridícula quanto aquilo que criticamos.*
E eis que o homem esqueceu que vai morrer.
Sois pó, e ao pó voltareis — mas preferis o brilho falso do metal e a ilusão luminosa das telas.
Transformastes o efêmero em trono, e o espelho em altar.
Erguestes vossos SUVs como arcas de salvação, desfilando sobre o asfalto quente enquanto o mendigo vos observa como quem contempla um deus menor.
A Troca do Silêncio Pela Gritaria
Dize-me, ó homem moderno: que fizestes da vossa alma?
Trocaste o silêncio pela gritaria, a fé pela pose, o amor pela opinião.
Cada qual se crê protagonista de uma epopeia medíocre, e o outro, mero figurante de seu delírio de importância.
E vós, que invejais, que desejais o que não vos pertence, que mentis com astúcia, aplicais golpes pequenos e vilanias discretas — credes que o mal diminuto é inocente, como se o pecado miúdo não fermentasse o abismo?
Ai de vós, que transformastes a esperteza em virtude e o engano em triunfo!
O Trânsito, Vosso Juízo Cotidiano
Nas ruas, os motores rugem como bestas impacientes.
Homens e mulheres se devoram por segundos, e o asfalto tornou-se altar de sangue e pressa.
O trânsito é vosso juízo cotidiano — nele revelais a besta que habita vossos peitos.
Os Santos de Paletó
Mas eis que acima de todos, reinam os hipócritas — os santos de paletó, os pregadores de conveniência, os cristãos de aparência que se acham melhores que os outros.
Apontam, julgam e lançam não só a primeira pedra, mas a segunda, a terceira, a décima — até erguer muralhas de soberba entre si e o próximo.
Citadores de versículos, mas não de virtudes; veneradores do Cristo do discurso, e não do Cristo da cruz.
Pregam humildade enquanto acumulam ouro, e se creem escolhidos quando apenas se perderam.
A Fé Pixelada: O Novo Templo
E eis também o novo templo — a tecnologia.
Sois sacerdotes de uma fé pixelada, que adora o número, o like, o reflexo digital da própria vaidade.
Ali confessais vossos pecados em stories, e vos redimis com filtros e frases alheias.
O altar é o feed, a oração é o post, e o amém, o comentário.
Vossos olhos não se levantam mais aos céus — olham apenas para a tela, onde buscais aprovação, como mendigos do aplauso, como profetas do vazio.
O Silêncio Cortante da Verdade
E dizei-me: que é o vosso coração, senão uma notificação sem resposta? Que é a vossa fé, senão um emoji de esperança morta?
Rides, mas é riso de histeria — chorais, mas é lágrima de autopiedade.
O mundo tornou-se um teatro, e cada alma, um personagem faminto por plateia.
E assim caminha a humanidade: cega pelo brilho de si mesma, surda ao clamor do outro, inchada de vaidade e embriagada de opinião.
Esquecestes que sois passageiros — que a carne se desmancha, que o tempo não vos pertence, e que o juízo não vem com fanfarra, mas com o silêncio cortante da verdade.
O fígado do mundo apodreceu — inflamado de ódio, entupido de vaidade, corroído pela ausência de amor.
E vós, que ainda respirais, tomai cuidado: o apocalipse já começou — e começou dentro de cada um.
* Sim, é autoparódia. E sim, essa frase lá em cima no inicio foi escrita pagando pau descaradamente para o Renato Russo.
Inspirações para Desopilar o Fígado
Eis a gênese deste libelo: a fúria lúcida diante de uma nação que, cega, se afoga na lama da própria vaidade. Um dos textos que mais influenciaram a visão e o tom aqui presentes foi esta coluna de Arnaldo Jabor. Recomendo a leitura:
Nota do Véi: Esse texto do Jabor (“Só nos restam as maldições”) é um clássico. Lembro-me da primeira vez que li, fiquei sem saber se ria ou se chorava. É a exata mistura de profecia e sarcasmo que tentamos reproduzir.
- Arnaldo Jabor: Só nos restam as maldições (O Globo)
- Rubem Braga: Trechos de A Traição das Elegantes (Um olhar lírico e mordaz sobre a hipocrisia social e a miséria).
- Clarice Lispector: Comentário sobre Crônicas (Clarice dissecava a alma feminina e o vazio urbano em “Onde Estivestes Ontem à Noite?”).
- Antonio Callado: Crônicas de Confrontação (Callado foi uma voz essencial na denúncia política e social durante tempos sombrios).
Leia sem pressa. E que seu fígado aguente o tranco.
Leia também: Estoicismo Pop: Autoajuda simplista disfarçada de filosofia