As Pelejas de Ojuara: O Homem que Desafiou o Diabo. Resenha do Filme e Livro

As Pelejas de Ojuara são uma declaração de guerra à seriedade. O pacato José Araújo chuta o balde, vira Ojuara e faz do deboche a arma. Conheça a lenda: o anti-herói que riu do diabo e provou que rir é o melhor feitiço contra qualquer desgraça.

1. Do pacato José Araújo ao lendário Ojuara: O Batismo da Rebeldia

Ojuara Filme

Antes de se converter em lenda, ele era apenas José Araújo — um sertanejo comum, daqueles que sofrem sob o sol rachando, vivendo à margem, empurrado por humilhações e injustiças. Trabalhava, apanhava da vida, era sempre passado para trás por quem detinha poder ou astúcia. Até que um dia, exausto de ser um coadjuvante na própria história, ele realiza o gesto mais libertador e simbólico da trama: vira o nome do avesso.

De Araújo nasce Ojuara — e, com a inversão nominal, surge um novo homem. É um batismo ao contrário, um rito de renascimento conduzido pela rebeldia. Essa subversão é o tom que define toda a narrativa: em Ojuara, tudo desafia a ordem — da fé, da moral, da lógica e até da própria língua.

2. O Livro e o Filme: Da Alma Anarquista à Farra no Cinema

O universo de As Pelejas de Ojuara (livro de Nei Leandro de Castro) é uma explosão de oralidade nordestina: frases curtas e diretas, ditos populares, erotismo, humor e religiosidade fervendo no mesmo caldeirão. É, em essência, a literatura de cordel com uma alma profundamente anarquista.

O filme O Homem que Desafiou o Diabo (dirigido por Moacyr Góes, 2007) capta essa energia e a transforma em um carnaval sertanejo vibrante. Marcos Palmeira encarna Ojuara com um carisma bruto, debochado e completamente irresistível. O elenco de peso ainda conta com Flávia Alessandra como a magnética Mãe de Pantanha, Fernanda Paes Leme e Sérgio Mamberti. A história segue a metamorfose do ex-viajante José Araújo num andarilho mítico que cruza o sertão colecionando aventuras e, inevitavelmente, desafetos. De cada cidade que ele pisa, nasce uma nova história, uma nova paixão, uma nova briga e, principalmente, uma nova lenda.

3. O Enredo: Um Sertanejo, Mil Lendas e um Pacto com o Riso

Cansado da vida “séria” e submissa, Ojuara decide viver integralmente à sua maneira. Ele se torna, simultaneamente ou em turnos, aventureiro, galanteador, milagreiro e malandro.

Entre um duelo e outro, ele confronta padres gananciosos, políticos hipócritas, bruxos perigosos, coronéis opressores e, no auge de sua ousadia, o próprio diabo. A genialidade da trama reside no fato de que Ojuara nunca é o herói tradicional: ele é o anti-herói perfeito, que triunfa pela perspicácia e pela sagacidade de sua língua. O humor é a sua arma definitiva. No seu universo particular, o medo é uma doença que se cura com a dose certa de deboche e irreverência.

4. Cão Miúdo X Ojuara: O Diabo que Tropeça e Perde a Majestade

O cão Miudo

Uma das sequências mais memoráveis (e deliciosamente absurdas) do filme é o encontro com o Cão Miúdo, a representação do próprio capeta. No entanto, em vez de surgir com imponência aterrorizante, o demônio se materializa caindo aos pedaços, recompondo-se com dificuldade, como se o Inferno tivesse perdido o manual de montagem. O Diabo, pateticamente, ainda avisa entre gemidos:

“Eu vou cair, hein…”

E Ojuara, com a fleuma de quem já enfrentou mazelas piores, dispara a resposta que selou seu humor desbocado e irreverente:

“Pois caia logo de uma vez, féla da puta!”

Este momento resume a alma da obra: o poder demoníaco é ridicularizado por um sertanejo, que não teme nem o sagrado, nem o profano. É a cultura popular gritando: “O medo é invenção dos poderosos — aqui a gente ri até do capeta”.

5. Mãe de Pantanha: O Mito da Vagina Dentada e o Duelo com Ojuara

Mãe de Pantanha: O Mito da Vagina Dentada e o Duelo com Ojuara

Se existe uma força feminina capaz de verdadeiramente abalar a autoconfiança e o ego de Ojuara, ela atende pelo nome de Mãe de Pantanha. Ela não é uma santa, nem uma musa romântica — ela é a feiticeira, dona de um poder telúrico tão antigo quanto o sertão. Dizem ter nascido de um cruzamento entre o desejo e a vingança, e carrega consigo o símbolo do medo masculino mais atávico: a vagina dentada. Este mito, que atravessa o imaginário popular, é a metáfora da mulher indomável, que devora quem ousa subestimá-la.

Mãe de Pantanha é a independência encarnada: vive isolada, não se submete a homem algum e manipula feitiços com a mesma destreza com que manipula a vaidade alheia. Quando seu caminho cruza o de Ojuara, o encontro se torna um intenso duelo de forças: a perspicácia sertaneja dele contra o poder mágico dela.

Contudo, como bom malandro, Ojuara não se permite ser vencido facilmente. Para quebrar o feitiço e escapar do abraço fatal da feiticeira, ele engendra um consolo de rapadura — um artefato ao mesmo tempo doce, rígido e incrivelmente engenhoso. É com essa criação improvável que ele consegue “enganar” o poder da mulher encantada, quebrando os dentes que representavam a dominação e o medo.

A cena é tão absurda quanto genial: uma mistura potente de humor, erotismo e crítica à fragilidade do poder masculino. No fundo, Nei Leandro de Castro demonstra que a esperteza e a criatividade popular superam até mesmo as forças imemoriais do mito. E Mãe de Pantanha, mesmo “derrotada” pelo truque, permanece invicta no imaginário: uma mulher assim é inesquecível.

6. Sertão Gótico, Místico e Debochado: O Folclore em Chamas

O sertão retratado por Nei Leandro de Castro se distancia do sertão das secas documentais ou das tragédias secas de Graciliano Ramos. É um sertão mágico, místico e visceralmente erótico.

Um território onde a fé e o feitiço coexistem pacificamente, onde o santo convive com o diabo, e onde as histórias — os “causos” — correm de boca em boca, crescendo exponencialmente a cada repetição. É o folclore gótico nordestino em sua forma mais apurada: o demônio surge, mas tropeça; o santo pode proferir palavrões; e o herói se consagra como mito justamente por recusar a solenidade e o excesso de seriedade.

7. No Equilíbrio entre a Moral e a Malícia Despudorada

O que garante a perenidade da obra é esse equilíbrio improvável: a espiritualidade e a safadeza caminham de mãos dadas. Ojuara desafia o diabo, mas também desafia com vigor a moral cristã e todas as convenções sociais rígidas. Ele se estabelece como um símbolo potente da libertação da culpa, do homem que abraça seus desejos e instintos sem pedir perdão a absolutamente ninguém.

É por essa razão que seu humor, ao mesmo tempo que encanta, também incomoda: por trás das gargalhadas há uma crítica social incisiva — ao moralismo exacerbado, à hipocrisia e à ideia de que o pecado deve ser uma prisão eterna.

8. Livro vs. Filme: Duas Versões, a Mesma Alma Insubmissa

O livro de Nei Leandro é notavelmente mais detalhado, recheado de digressões e uma profusão de causos laterais. Sua escrita é a transposição perfeita de um contador de histórias numa calçada ao cair da tarde — saborosa, exagerada e cheia de malícia intrínseca.

O filme, por sua vez, é uma farra visual e sensorial: cenários vibrantes e coloridos, sotaques carregados com autenticidade e um ritmo frenético de feira nordestina. Alguns personagens ganham um foco maior na adaptação cinematográfica (como a própria Mãe de Pantanha e o Cão Miúdo), enquanto outros se perdem ligeiramente na montagem, mas a essência permanece intacta: Ojuara é um espelho do Brasil profundo que encontrou a maneira de rir da própria desgraça.

9. Por Que Ainda Vale a Pena Mergulhar Nessa História

Porque é praticamente impossível não se reconhecer, ainda que minimamente, na figura de nosso protagonista. Todos nós já sentimos a urgência de “inverter o nome” e começar tudo de novo. Todos já tivemos a vontade irrefreável de mandar um sonoro “caia logo, féla da puta” para o problema da vez que insiste em nos derrubar.

E, acima de tudo, todos já compreendemos que o riso é, muitas vezes, a única forma eficiente de persistir. Ojuara é, portanto, o mito da resistência forjada na gargalhada — o homem que enfrentou o Diabo e conseguiu sair de cena rindo da cara dele.

10. Conclusão: Entre a Lenda, a Risada e a Sabedoria do Sertão

No final das contas, Ojuara transcende a definição de um simples personagem. Ele é um estado de espírito nordestino — aquele que se recusa a ser dobrado, que encara o medo com um sorriso sarcástico e que possui a sabedoria ancestral de que o sagrado e o profano são vizinhos de porta.

É o Brasil profundo, com um cheiro marcante de poeira, suor, cachaça e uma imensa sabedoria popular.

E se o diabo aparecer na sua frente… bem, você já sabe exatamente o que responder.

Embora a adaptação para o cinema seja inegavelmente divertida e capte a alma debochada de Ojuara, é no livro que a história atinge a perfeição, apresentando-se como uma obra-prima sem pontos baixos. O filme, por sua vez, por vezes dá umas escorregadas na montagem e no tom, carregando um arzinho meio novelístico “global” que, embora não comprometa a farra sertaneja, entrega a produção a um estilo que nem sempre honra a crueza anarquista e poética da literatura de Nei Leandro de Castro.

VEREDITO FINAL VEI DO BLOGUE:

★★★☆☆ 3/5

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