Em 1973, enquanto o Brasil era sufocado por coturnos, censura e ufanismo de vitrine, Gal Costa resolveu tirar a saia. Literalmente. A capa do Álbum Índia — um close frontal da cantora usando apenas uma tanga vermelha cavada e colares — deu um tapa na cara da caretice nacional.
Não era só um corpo. Não era somente uma tanga vermelha Era uma mensagem.
Gal sabia o que estava fazendo. E por isso sustentou o olhar direto da câmera com a serenidade de quem estava cravando seu nome não só na música, mas na história visual da cultura brasileira. A foto, assinada por Antônio Guerreiro, estampava a capa do LP que seria lacrado pela ditadura militar com um plástico azul-escuro, para que os olhos castos do cidadão médio não fossem corrompidos por… uma tanga. Uma. Tanga.

O véi comenta:
“Censuraram uma tanga, meu filho. Uma T-A-N-G-A. Enquanto isso, a tortura comia solta nos porões. Esse povo besta sempre teve medo de corpo, de cor, de mulher. E Gal? Gal respondeu com um disco. E que disco.”
A primeira capa censurada da música brasileira
O escândalo foi tanto que a gravadora Philips precisou embalar o álbum num invólucro opaco. A contracapa também foi coberta: nela, Gal aparecia de costas, com os seios cobertos por colares — vestida como uma entidade indígena saída de um delírio tropicalista.
Mas a censura visual só ajudou a tornar o disco um objeto de culto. Todo mundo queria ver o que estava escondido. E ouvir o que se escondia naquelas faixas.
A música? Um híbrido de Brasil profundo, erotismo e refinamento
Se a capa provocava, o conteúdo emocionava. Índia marca o momento em que Gal abandona o furacão psicodélico de 1969 e 1970 e entra numa fase mais introspectiva, sensual e sofisticada.
Com produção de Guilherme Araújo e direção musical de Gilberto Gil, o disco conta com arranjos magistrais de Rogério Duprat, Dominguinhos, Perinho Albuquerque, além de uma seleção de músicos do mais alto escalão da MPB: Toninho Horta, Chico Batera, Luiz Alves, Roberto Menescal, Arthur Verocai, entre outros.
Gal lê o cancioneiro brasileiro e latino-americano com voz e desejo. A tropicalista agora era Diva Tropical, abrindo uma nova persona: mais cantora popular — sem nunca perder a brejeirice baiana.
Álbum Índia: Faixas que são quase perfumes:
- Índia – hino paraguaio em versão quase erótica; arranjo cinematográfico de Duprat
- Milho aos Pombos – de João Ricardo e João Apolinário, com sotaque folk-psicodélico
- Presente Cotidiano – de Luiz Melodia, uma crônica urbana de desejo e rotina
- Volta – o Lupicínio visceral e choroso, com Gal chorando junto sem desafinar
- Relance – Gil e Caetano sussurrando pelos olhos de Gal
- Da Maior Importância – Donato e Caetano, melodia ensolarada com sorriso de esquina
- Passarinho – Hermeto Pascoal com leveza que faz a voz virar voo
- Desafinado – Tom Jobim repaginado com violão e balanço novo

O véi puxa uma cadeira e filosofa:
“Ela canta que é uma ‘fruta gogóia… rapaz, e não é? Uma fruta rara, dessas que não se vende no mercado, só nasce em mata fechada e dá no pé da rebeldia. Você morde e sente o gostinho da Tropicália.”
Por que isso ainda importa
Porque a capa de Índia não é só bonita — é símbolo de resistência estética.
Porque o disco não é só gostoso — é ato político em forma de bolero e psicodelia.
Porque o corpo de uma mulher, exposto com dignidade e arte, não deveria ser tabu em 1973 — nem em 2025.
Hoje, o disco Índia continua atual. O curioso é que, se antes o corpo era silenciado, hoje muitas vezes o excesso de exposição leva ao efeito oposto — tudo parece banal, quando na verdade era pra ser arte.
Não como provocação barata, mas como afirmação de liberdade cultural, sexual e visual.
Ficha Técnica – Álbum Índia (Gal Costa, 1973)
- Artista: Gal Costa
- Álbum: Índia
- Ano: 1973
- Gravadora: Philips / PolyGram
- Produção: Guilherme Araújo
- Direção musical: Gilberto Gil
- Arranjos: Rogério Duprat, Perinho Albuquerque, Dominguinhos
- Fotografia da capa: Antônio Guerreiro
- Direção de arte: Aldo Luiz
- Gênero: MPB, Tropicália, bolero, brega refinado
- Duração: 35 min (aprox.)
Faixas do LP Índia
Lado A
1. Índia – José Asunción Flores / Manuel Ortiz Guerrero (versão: José Fortuna)
2. Milho aos Pombos – João Ricardo / João Apolinário
3. Presente Cotidiano – Luiz Melodia
4. Volta – Lupicínio Rodrigues
Lado B
5. Relance – Gilberto Gil / Pedro Novis
6. Da Maior Importância – Caetano Veloso / João Donato
7. Passarinho – Tuzé de Abreu
8. Desafinado – Tom Jobim / Newton Mendonça

Arrematando:
“Se não for pra incomodar, não precisa nem botar o disco pra rodar. Mas se for Índia, aí sim: tira o plástico azul, aumenta o volume e deixa a gogóia cantar.”
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