O Dia em Que Descobri Que Aqueles Artistas Chatos Eram Geniais

Artistas chatos ou geniais? Por muito tempo, nomes como João Bosco, Ivan Lins, Jards Macalé, Agnaldo Timóteo, Gonzaguinha, Belchior e Nara Leão passavam batido pelos meus ouvidos. Eram vozes da infância, da televisão, da radio de MPB de musica soft tocando no carro como pano de fundo de conversas de familia. Soavam antiquados, difíceis, distantes. “Música de ambiente”, eu pensava. Ou, sendo honesto, música chata. Mas então o tempo passou — e algo mudou.

Um dia, com o peito mais calejado e a escuta mais aberta, resolvi dar uma nova chance. Coloquei um álbum. Depois outro. E ali, onde antes eu só via estranheza, encontrei beleza. Emoção. Sofrimento. Sofisticação. Ironia. Doçura. Realidade. Foi como se aquelas músicas tivessem ficado ali, quietas, esperando que eu crescesse o bastante para escutá-las de verdade.

Este aqui é um convite aberto — e um manifesto pessoal. Aqui, revisito artistas que, por anos, achei entediantes ou distantes. E, agora, enxergo como monumentos da música brasileira. É um exercício de escuta, memória, humildade e paixão. Se você já torceu o nariz para algum deles, talvez esteja na hora de ouvi-los de novo. E com outros ouvidos.


João Bosco: Era apenas samba torto se tornou encantamento visceral

Antes: Soava enjoado, embolado. A voz parecia gritada, e as letras indecifráveis. Aquele samba acelerado, com mil sílabas por segundo, me afastava. João parecia cantar contra o tempo, e eu não tinha tempo para ouvir. Lembro de ter um profundo preconceito sobre o João Bosco cantando um samba sobre algo parecendo ingredientes de uma feijoada ou outra comida Brasileira: (Linha de Passe)

Agora: Ouço João Bosco como quem ouve um contador de histórias místicas. As harmonias são complexas, mas revelam camadas emocionais profundas. “Corsário”, “O Bebado e a Equilibrista”, “Dois pra lá, dois pra cá” — Todas essas músicas carregam uma força política intensa, um drama humano profundo e uma entrega vocal que arrepia. São músicas feitas para durar, não para agradar de primeira. João é como um vinho encorpado: exige maturidade para ser verdadeiramente apreciado. Além disso, as canções de João Bosco e Belchior ganham uma dimensão sublime quando interpretadas pela voz da Elis Regina

Mas, sinceramente? “Linha de Passe” ainda não desce. Parece que João Bosco resolveu misturar todos os ingredientes possíveis — samba, comida, política, trava-língua — e achou que isso daria uma obra-prima. Não deu (pra mim). Claro, ele tem várias outras músicas realmente boas — vai entender esse mistério: o sujeito acerta em cheio em tantas, mas nessa aqui me dá vontade de pular a faixa.

Prefiro lembrar que até os grandes têm seus delírios. E sigo firme com o melhor do repertório.

Álbum essencial: Cabeça de Nego (1986)


Ivan Lins: da cafonice ou comercial de margarina para o jazz emocional

Antes: “Novo Tempo” me parecia música de comercial. Tudo era limpo demais, com aquela aura de trilha sonora de novela das oito. Não entendia o culto em torno dele.

Agora: Descubro que Ivan Lins é, na verdade, um dos maiores compositores do Brasil. A voz por vezes doce esconde letras pungentes. As harmonias são ricas, jazzísticas, e os arranjos têm uma sofisticação que só se revela com o tempo de audição. “Cartomante”, “Bilhete”, “Dinorah, Dinorah” ou “Bandeira do divino” tocam feridas que só o tempo abre. É música de alma e técnica.

Quando eu era criança, lá no século passado, eu tinha muito medo da música Cartomante do Ivan Lins. Havia nela algo inexplicavelmente ameaçador, como se um apocalipse estivesse prestes a chegar, e a canção fosse um anúncio desse momento que ainda estava por vir.

Álbuns essenciais: Modo Livre (1974) e Nos dias de hoje (1978)


Jards Macalé: do caos meio esquisito à poesia marginal

Antes: Parecia um doidão experimental (e é mesmo). Música desconexa (não é), voz estranha (as vezes), letras sem sentido (não são!). Jards Macalé me soava como um delírio gravado

Agora: Percebo um gênio da contracultura. Jards Macalé é o elo entre o samba e o punk, entre o tropicalismo e o existencialismo. “Vapor Barato” hoje soa como hino de uma juventude desiludida. Suas canções têm o cheiro do subúrbio, o gosto do desespero, e uma poética que dói como um poema do Torquato Neto. Jards é música sem maquiagem. “Farinha do desprezo” é uma das minhas favoritas.

Minha lembrança vem da adolescência, quando descobri a banda Camisa de Vênus e ouvi uma música do Batman que ameaçava: “Cuidado! Há um aviso na porta principal.” Demorei um tempo até descobrir que aquilo era, na verdade, uma versão cover de Gotham City, do Jards Macalé. Também conheci Vapor Barato pela versão do Rappa — que, pra ser honesto, acho chata. Nos anos 90, ouvi a versão da Gal Costa com o Zeca Baleiro e achei melhorzinha. Essas covers, meio tortas ou não, foram meu convite para mergulhar na obra original e complexa do Jards.

Álbum essencial: Jards Macalé (1972)


Agnaldo Timóteo: do brega caricato ao tenor da paixão

Antes: Eu achava exagerado, cafona (vai …ainda acho cafona sim, mas e dai?), quase uma caricatura. Aquela entrega teatral e repertório melodramático me repeliam. Era o símbolo de um Brasil cafona.

Agora: Vejo um cantor de técnica absurda, com potência vocal impressionante. Agnaldo é um intérprete de alma — canta como quem está prestes a desmaiar. Discos como “Os Brutos Também Amam” ou “Obrigado, Mãe” mostram um artista que transforma kitsch em arte sincera. Sua ousadia estética e existencial faz dele um ícone. E sua voz ainda ecoa com força no tempo. Ouça com atenção da uma chance pro “Menino Mininou”.

Minha lembrança de Agnaldo Timóteo vem de muito antes do “menino ou menina, menino?”. Era na tenra infância, quando eu acordava cedo pra ir pra escola, e quem me tirava da cama era o radialista Zé Béttio, na rádio AM. Ele tinha uma vinheta inconfundível em que gritava pras ouvintes: “Dona Maria, joga água no marido pra acordar! Joga água!”. Ao fundo, tocava “Quem é” na voz potente do Timóteo. A música perguntava “Quem é?”, e o radialista respondia no ato: “É o Zé Béttio!”. Um momento tragicômico, radiofônico e absolutamente inesquecível — e, querendo ou não, foi ali que Agnaldo entrou pra trilha sonora da minha vida.

Álbum essencial: Os Brutos Também Amam (1977)


Gonzaguinha: rançoso ideológico virou a raiva que canta verdades

Antes: Via como um militante musical. Letras pesadas, músicas ranzinzas, sem graça aparente. Me soava como sermão cantado.

Agora: Entendo a urgência em sua voz. Gonzaguinha cantava o que poucos tinham coragem de dizer. Misturava dor, denúncia, amor e contradição. Faixas como “Comportamento Geral”, “Grito de Alerta” e “Sangrando” hoje me emocionam pela coragem e pela beleza crua. Ele traduz uma raiva que ainda não foi resolvida no Brasil. É necessário e eterno.

De todos esses artistas, minha lembrança mais marcante é também a mais triste. Lembro exatamente do dia em que a Globo interrompeu a programação — talvez fosse a Sessão da Tarde — para dar a notícia da morte de Gonzaguinha em um trágico acidente de carro. A cena ficou gravada na memória, como se o Brasil tivesse parado por alguns segundos. Minha mãe, com a sabedoria simples de quem sente as coisas na alma, soltou um comentário que não esqueci: “O pai se foi, e logo o filho foi atrás”, se referindo a Luiz Gonzaga, pai de Gonzaguinha. Naquela hora, entendi que algumas vozes se calam cedo demais — mas continuam gritando dentro da gente.

Álbum essencial: Recado (1978)


Belchior: do intelectual chato ao cronista da alma nordestina

Antes: Falava demais. Letras densas, músicas longas. A voz arrastada, os temas pesados demais. Parecia sempre “discursando”.

Agora: Enxergo no Belchior um poeta da estrada. Um Dylan cearense. Belchior cantava as angústias de uma geração com beleza e ironia. “Alucinação”, “Como Nossos Pais”, “Apenas Um Rapaz Latino-Americano” — são obras-primas da canção brasileira, com frases que grudam na alma. Sua sinceridade bruta é um tapa na cara das fórmulas vazias do pop moderno.

Minha porta de entrada para o mundo de Belchior foi uma fita K7, daquelas com rótulo escrito à mão, que um velho amigo de escola me emprestou quando eu tinha uns 15 anos. Era uma coletânea com músicas dele interpretadas por Elis Regina. A primeira que me atingiu em cheio foi “Como Nossos Pais“. Lembro de ficar completamente emocionado — não só pela força da letra, mas pela entrega da voz da Elis, que parecia cantar com a alma em carne viva.

Com o tempo, fui entendendo aquelas músicas na fonte: na voz do próprio Belchior. Aos poucos, aquela figura que antes me parecia só um falador arrastado foi ganhando corpo, verdade, poesia. E hoje, toda vez que ouço aquelas canções, sinto que elas continuam me dizendo coisas novas. Como se aquele velho K7 ainda rodasse — dentro do meu som CEE de qualidade duvidosa.

Álbum essencial: Alucinação (1976)


Nara Leão: da voz apagada ao sussurro mais verdadeiro da MPB

Antes: Achei sempre suave demais, quase sem voz. Um tipo de bossa nova insossa. Comparada a Elis Regina, parecia um sussurro tímido.

Agora: Compreendo a doçura como força. Nara Leão não precisava gritar. Ela dizia tudo com um olhar, com um sussurro. Foi vanguarda silenciosa. Cantou samba, protesto, tropicália e o feminino com delicadeza rara. Hoje, sua voz me parece a mais humana de todas. É a que mais se parece com a vida real. Ouvindo atentamente percebo como cantoras do quilate de Rita Lee parecem ter uma inspiração na Nara Leão. A Fernanda Takai nem vou falar…

Minha porta de entrada foi “José“, no disco Build Up da Rita Lee. Fiquei curioso com a música, quis ouvir a versão original — e descobri a de Nara. Ao mesmo tempo, ouvia muita gente dizendo que a Fernanda Takai tinha um timbre “meio Nara”. Foi a curiosidade que me levou, e foi a sensibilidade dela que me prendeu. E ali começou minha descoberta de uma obra que não impõe, mas permanece. Nara não exige ser ouvida — mas quando você ouve, ela fica.

Álbum essencial: Nara Pede Passagem (1966)


Um convite final: ouça de novo, ouça direito. Se você acha determinados artistas chatos, tente dar uma segunda chance

Talvez você já tenha esbarrado em artistas que pareceram chatos, difíceis ou simplesmente indiferentes numa primeira audição — aqueles que ouviu de relance e nunca mais quis saber. Mas guarde essa ideia: nem toda música é feita para ser compreendida de primeira. Muitas vezes, ela espera que a gente viva, cresça e amadureça para revelar toda a sua profundidade e significado.

Ouvir música com maturidade é um presente que damos a nós mesmos. À medida que acumulamos experiências, sentimentos e histórias, nossa percepção musical se transforma. A canção que antes soava distante ou confusa pode, com o tempo, se tornar uma companheira, uma revelação íntima e profunda.

Se você quer ter uma experiência musical verdadeira e transformadora, dê uma nova chance para aquela voz, aquela letra, aquele som que antes parecia inalcançável. Coloque um disco inteiro, desligue as distrações e escute sem pressa, com atenção plena. Permita que a música se revele no seu tempo, sem pressa.

Quem sabe você descubra que aquela voz que parecia distante e inacessível era, na verdade, um espelho para suas próprias emoções e vivências.

Enfim, música é mais do que entretenimento — é uma linguagem que fala diretamente à alma, especialmente quando somos capazes de escutá-la com o coração aberto e a mente receptiva.

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