Poucos nomes moldaram tanto o som do rock brasileiro quanto Liminha. Baixista, produtor musical, arranjador, engenheiro de estúdio e ex-integrante dos Mutantes, ele se tornou uma espécie de George Martin brasileiro — aquele profissional que não apenas grava, mas transforma, dirige, lapida e influencia gerações inteiras de artistas.
Outro dia eu estava ouvindo umas músicas dos anos 80 — aquelas playlists aleatórias que a gente solta só pra deixar a casa com som — quando parei, sem querer, prestando atenção no baixo. Era um grave firme, elegante, que parecia segurar tudo no lugar sem fazer escândalo. Eu não sabia quem tocava. Não estava olhando crédito nenhum. Mas de repente pensei:
“Rapaz… isso aqui só pode ser o Liminha. O baixo dele é inconfundível.”
Foi assim, num instante de reconhecimento instintivo, que resolvi escrever este texto. Porque ele é desses personagens que ficaram gigantes demais para caber apenas nos bastidores — e, ao mesmo tempo, discretos demais para o público geral perceber a dimensão do que fizeram
Antes dos Mutantes — de onde surge o talento
Arnolpho Lima Filho nasceu em 1951, em São Paulo, numa casa onde música não era hobby: era
paisagem. A mãe, pianista clássica; o pai, apaixonado por cordas. Natural que ele começasse jovem,
primeiro na guitarra — não no baixo — e circulasse por grupos como The Thunders, Os Lunáticos e
Baobás, que serviram de treino para o senso de precisão rítmica e melodia que viraria assinatura.
Mas o destino tinha outros planos.
Como Liminha entrou nos Mutantes
Antes de ser oficialmente integrado aos Mutantes, ele já era próximo de Sérgio Dias e Arnaldo
Baptista. Eles conviviam na mesma cena paulistana, nos mesmos estúdios, nas mesmas rodas
musicais. Com Rita Lee, a relação era respeitosa, mas ela sempre foi mais reservada com músicos
novos no círculo íntimo da banda.
Quando Os Mutantes começaram a expandir o som — mais camadas, mais peso, mais viagens —
perceberam que precisavam de um baixista que entendesse a loucura e transformasse em música.
Ele entrou primeiro como “músico convidado”, testado ali, acolá, e só depois oficialmente integrado.
Foi a escolha certa.
O baixista entra em cena de verdade com A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (1970) e segue
em:
- Jardim Elétrico (1971)
- Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets (1972)
- Tecnicolor (gravado em 1970, lançado só em 2000)
- O A e o Z (gravado em 1973, lançado 1992)
- Participa também de Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida (Rita Lee + Mutantes)
Mas como toda banda intensa, os Mutantes começaram a se transformar. Arnaldo saiu. O clima ficou outro. A psicodelia deu lugar ao progressivo. O laboratório virou fábrica. Ele que nunca teve apego a uma única identidade musical, saiu amigavelmente — mantendo forte laço com Sérgio Dias — e foi para onde o instinto mandava: os estúdios.
A virada para produtor — e o início de uma carreira gigantesca
Logo depois, virou músico de estúdio da PolyGram e depois produtor da WEA. Seu primeiro grande marco como produtor foi:
- As Frenéticas (1977) — o primeiro disco de ouro da WEA.
O passo seguinte foi abrir, ao lado de Gilberto Gil, o estúdio Nas Nuvens, templo do pop/rock brasileiro dos anos 80 e 90.
Dali, o cara virou referência absoluta — e também passou a atrair tensões naturais de quem trabalha com gênios, egos e bandas autorais.
Discos importantes produzidos por Liminha — uma lista ampla
| Artista | Álbum | Foco/Gênero |
| Rock / Pop Rock | ||
| Titãs | Cabeça Dinossauro | Rock Clássico / Peso |
| Titãs | Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas | Rock / Crítica Social |
| Os Paralamas do Sucesso | Selvagem? | Rock / Fusão Latina |
| Paralamas do Sucesso | Bora Bora | Pop Rock |
| Paralamas do Sucesso | Big Bang | Pop Rock |
| Paralamas do Sucesso | Severino | Pop / Regional |
| Nação Zumbi | Da Lama ao Caos | Manguebeat / Regional |
| Barão Vermelho | Declare Guerra | Rock |
| Legião Urbana | As Quatro Estações (Apoio) | Rock |
| Skank | Calango (Co-produção) | Pop Rock / Reggae |
| Kid Abelha | Educação Sentimental (Parte do disco) | Pop |
| MPB, Pop e Misc. | ||
| Gilberto Gil | Realce | MPB / Pop |
| Caetano Veloso | Outras Palavras | MPB |
| Marina Lima | Fullgás (Tocando Baixo) | Pop |
| Elba Ramalho | Alegria, Coração Brasileiro | MPB / Regional |
| Zé Ramalho | Vários discos | MPB / Rock Rural |
| Lobão | Ronaldo Foi Pra Guerra | Pop Rock |
A lista total passa de 180 discos. Não existe outro produtor no Brasil com esse alcance.
A influência transcende o rock; foi ele quem produziu o seminal O Canto da Cidade (1992), de Daniela Mercury, ajudando a redefinir o som pop de carnaval. Sua reputação de excelência técnica o levou a parcerias com engenheiros de som de renome internacional, como Humberto Gatica, consolidando o estúdio Nas Nuvens como um polo de inovação.
Tal visão de mercado o credenciou, anos depois, a atuar também na gestão da indústria, chegando a ocupar o cargo de Vice-Presidente da Sony Music Brasil, demonstrando que sua arquitetura invisível era, na verdade, uma arquitetura de negócios.
O baixo — uma assinatura que você reconhece sem pensar
Além de produtor e baixista, ele também é um compositor de hits que marcaram época. A parceria mais famosa é com Gilberto Gil na música “Vamos Fugir”, canção que se tornou um clássico atemporal da MPB, regravada com sucesso pelo Skank.
Eu falei no começo: estava ouvindo música aleatória e reconheci o baixo dele. Isso acontece porque o estilo do Liminha tem algumas marcas difíceis de copiar:
- timbre limpo, comprimido, sem sujeira desnecessária
- graves que carregam a música mas não se mostram
- melodias sutis que conversam com a voz
- precisão de relógio, mas com balanço brasileiro
- ataque moderado — sem slap, sem exibicionismo
- presença sem arrogância
Ele toca como quem diz: “deixa comigo; vocês podem construir o resto.”
As críticas e tensões — porque ninguém atravessa 50 anos ileso
Aqui entra a parte dos desafetos, tensões e críticas.
- Lobão — o mais vocal Lobão reclamou publicamente, mais de uma vez, que o produtor:
- polia demais o som, “limpava a sujeira boa”interferia nos arranjosàs vezes “tomava a música pra si”.
- Titãs — tensão criativa real Durante Cabeça Dinossauro, a banda queria som sujo, seco, agressivo. O produtor queria definição, punch e clareza. Bateram cabeça. Branco Mello e Tony Bellotto já comentaram isso. O resultado? Um clássico justamente porque ficou no meio do caminho perfeito.
- Paralamas — pequenas arestas Herbert queria espontaneidade latina; Arnolpho buscava organização pop. Nada sério — só atrito normal de estúdio entre músicos inteligentes.
- Bandas que reclamavam do “som Liminha” Algumas bandas mais cruas dos anos 80 e 90 diziam que: “se chamar o Liminha, vai ficar com a cara dele.”E… ficava mesmo.Mas também ficava bom.
Produtores autorais deixam marcas, incomodam, discordam, refazem, moldam.
Ele ajudou a criar a sonoridade do rock brasileiro. E quando alguém cria uma linguagem inteira, naturalmente vai desagradar parte dos artistas que não queriam se encaixar nela.
Faz parte.
Conclusão: por que o baixo dele é reconhecível até quando você não está olhando crédito
Porque ele não toca só notas. Ele organiza a música — mesmo quando o papel dele é “apenas” tocar baixo. Ele é um arquiteto invisível. Um engenheiro do som brasileiro. E mesmo quem já brigou com ele reconhece o tamanho do cara.
Volto ao começo: eu estava só ouvindo músicas aleatórias e de repente pensei:
“Esse baixo eu conheço. É ele.”
É assim com artistas grandes de verdade. Eles deixam uma assinatura que a gente reconhece antes de entender por quê.
Seu impacto na música brasileira é formalmente reconhecido: em 2008, o produtor foi incluído na Lista dos 100 Maiores Artistas da Música Brasileira da Revista Rolling Stone Brasil. Tocar, produzir e moldar 180 discos o transformou em uma força da natureza.