O mito da originalidade e a visão dos haters sobre Raul Seixas
Desde sempre, a voz preguiçosa do hater de plantão solta seu mantra:
“Raul copiou.”
“Ele nem chega aos pés desses gringos.”
“Zappa sim, Raul só reciclou.”
E sabe de uma coisa? Essa crítica tem fundamento — e, surpreendentemente, é exatamente aí que mora a genialidade de Raul Seixas.
Talvez devêssemos inverter a perspectiva: Raul não é apenas isso, nem somente um imitador. Ele é, na verdade, uma espécie de plagiador dimensional — um portal que capta músicas já inventadas em outros universos e as devolve aqui com sotaque baiano, misticismo de camelô e uma dose tóxica de rock’n’roll.
A antena multidimensional: Raul Seixas e seus paralelos internacionais
Já parou pra pensar por que ideias semelhantes pipocaram em lugares tão distintos? No Texas, Frank Zappa satirizava gurus com humor ácido. Na Inglaterra, Ray Davies fazia crônicas sobre a classe média com sarcasmo fino. Nos bares esfumaçados dos EUA, Tom Waits cantava os quebrados com poesia suja. Na Califórnia, Captain Beefheart delirava com palavras desconexas e ritmos caóticos. E, no meio de tudo isso, um cara chamado Raul Seixas aparece no Brasil dos anos 70, usando camisa florida e lendo Aleister Crowley.
No fundo, Raul não estava copiando. Ele estava em sintonia. Ele era um sintonizador de frequências universais que traduziu tudo aquilo em português tropical, com cheiro de vinil velho e crônica popular. O plágio era apenas o sintoma de quem escutava demais.
Ele misturava Glauber Rocha com Elvis Presley, filosofia hermética com papo de feira. E funcionava. Como se todo ruído do mundo passasse pelo rádio AM de sua cabeça.
Raul não era um autor no sentido clássico. Era um médium. O primeiro médium do rock brasileiro. E talvez o mais autêntico justamente por essa mediação tão descarada.
Frank Zappa, Ray Davies, Tom Waits, Captain Beefheart e o Brasil
Esses nomes — Zappa, Davies, Waits, Beefheart — são referências de rock experimental, satírico, ácido, marginal. Raul Seixas os reinterpreta, absorve e devolve em linguagem e símbolos brasileiros, criando um caleidoscópio musical único.
Comparações musicais: Canções que refletem a mesma crítica social
“A Well Respected Man” x “Meu Amigo Pedro”
Ray Davies descreve o conformado britânico, preso à rotina e à aparência. Raul fala com Pedro, o amigo que se nega a mudar. O primeiro é observador, irônico. O segundo, direto, quase profético. Mesma crítica: a prisão invisível da rotina.
Enquanto Davies mantém certa distância do personagem, Raul o interpela, quase grita com ele. Há uma urgência ali, uma tentativa de resgatar o amigo do tédio existencial.
“Cosmik Debris” x “Pastor João e a Igreja Invisível”
Zappa satiriza um guru esotérico picareta. Raul cria um pastor típico charlatão, cheio de promessas e retórica. Ambos mostram o mesmo truque: vender salvação como se fosse produto de supermercado.
Mas Raul vai além: seu pastor é cômico, mas reconhecível, um personagem possível da vida brasileira. É o cara que prega na TV de madrugada, que promete carro zero no culto de domingo. É Brasil demais pra ser só plágio.
“Christmas Card from a Hooker…” x “Cachorro Urubu”
Tom Waits mostra a voz da marginalidade fingindo estar bem. Raul mostra a figura do excluído que já perdeu a identidade. Em ambos, não há denúncia explícita, mas dor encenada em forma de poesia.
Waits escreve a carta de uma mulher esquecida. Raul canta o lamento de alguém que já não é mais visto como homem. O drama é o mesmo: a dignidade quebrada por uma sociedade que passa por cima.
“Sunny Afternoon” x “Ouro de Tolo”
Ray Davies canta o típico burguês em ruína financeira e emocional, que apesar da perda mantém um tom resignado e sarcástico. Raul Seixas, por sua vez, fala do sujeito que aparentemente “tem tudo” — sucesso, dinheiro, estabilidade — mas reconhece o vazio e a futilidade dessa conquista. Ambas as músicas apresentam melodias doces contrastando com letras carregadas de ironia e crítica social.
No entanto, enquanto Ray Davies adota um tom mais resignado e contemplativo, Raul Seixas entrega uma crítica mais direta e pessoal, quase uma confissão amarga sobre a busca por sentido além do materialismo. Não é um manifesto revolucionário, mas sim uma meditação irônica sobre o que realmente importa na vida.
“Moonlight on Vermont” x “Cidade de Thor”
Beefheart explode a linguagem. Raul inventa uma cidade distópica onde tudo é civilizado demais. Ambos criticam a ordem excessiva. Em comum: o caos é vida, a perfeição é morte.
Raul transforma sua crítica em fábula. É como se ele dissesse: olha no que o futuro pode dar se não pararmos de obedecer. É um alerta em forma de lisergia.
O plágio como ferramenta de tradução cultural
Raul plagiava. Isso é fato. Não vou entrar na história de citar esses plágios, pois já é assunto notório na internet desde os tempos do Kibe Loco. Mas talvez ele fosse, acima de tudo, um tradutor. Pegava ideias complexas de um mundo distante — filosófico, roqueiro, esotérico, marginal — e as traduzia para o povão de Feira de Santana, do subúrbio carioca, da classe média confusa.
Ele filtrava o caos estrangeiro e devolvia com gírias, sotaques e referências de feira livre. Era quase uma dublagem de outra realidade.
Em vez de elitizar essas ideias, ele as popularizava. Pegava Lovecraft e fazia virar trilha de novela. Transformava Gurdjieff em conselho de boteco. Era antropofagia cultural de verdade, como pregava Oswald.
E não à toa, Raul não era querido pelas elites culturais da época. Justamente por isso: ele dava nomes populares ao que era tido como erudito. Tinha coragem de misturar Hermes Trismegisto com forró. E o pior (ou melhor): fazia isso funcionar no rádio.
Originalidade é um mito: Grandes gênios também copiaram
Originalidade virou moeda de vaidade. Mas os grandes criadores sempre foram bons ladrões. Dylan chupava Guthrie, Beatles copiavam Chuck Berry, Led Zeppelin devorava o blues. Raul fez isso também, mas teve a coragem de deixar escancarado.
Ele não vendia pureza. Vendia alquimia. Um alquimista pop, sujo, com fundo de quintal.
E mais: ele não imitava para agradar. Ele reconfigurava para provocar. Seus discos não são apenas homenagens — são colagens que gritam por independência. Mesmo quando Raul copia, ele recria. Mesmo quando ele recicla, ele desconstrói. Seu plágio nunca é subserviente. É insubordinado.
Raul Seixas e o manifesto contra os haters
O hater quer um Raul limpo, genial, inédito. Mas Raul era sujo, confuso, errante — e isso o tornava brilhante. Ele não estava preocupado em ser canonizado. Queria incomodar, fazer rir, fazer pensar. Ou, ao menos, fazer dançar.
Raul não é um gênio como Zappa. Ele é algo mais difícil de engolir: um espelho torto de Zappa, de Waits, dos Kinks — uma versão abrasileirada que escapa das métricas tradicionais. É mais fácil adorar um Tom Waits com voz de cemitério do que aceitar um Raul vestido de Elvis místico.
Raul é o vazamento tropical de um multiverso underground onde a esquisitice é norma, a contradição é força, e a genialidade é remendada com fita isolante. Ele é o tipo de gênio que não dá certo no papel — mas explode no palco, no vinil e no inconsciente coletivo.
Conclusão: Raul Seixas, o defeito que deu certo
Raul Seixas não era puro. Era mistura.
Não era inédito. Era colagem.
Não era gênio. Era transmissor.
Mas por ser tudo isso, foi o único capaz de ouvir o sinal e traduzi-lo com sotaque brasileiro. Uma dublagem torta, sim. Mas uma dublagem que virou voz autêntica.
E se ele plagiou? Claro que sim. Mas talvez fosse porque, em outra dimensão, essas ideias já eram dele.
Raul era o gênio que não pediu permissão. Apenas entrou no ar.
E a gente nunca mais conseguiu desligar o dial.
E essa é a genialidade que o hater não consegue captar: a genialidade da gambiarra genial.
Links a quem se interessar:
- Biografia de Raul Seixas – AllMusic
- Site oficial de Frank Zappa
- Ray Davies: Perfil na Rolling Stone
- Análise da música “Christmas Card from a Hooker in Minneapolis” – Songfacts
- Biografia de Captain Beefheart – AllMusic
- Letra e análise de “A Well Respected Man” – Genius
- Letra de “Meu Amigo Pedro” – Genius
- História do Rock – Britannica
- Frank Zappa: o gênio anárquico – BBC Culture
- Por que Captain Beefheart foi o maior excêntrico do rock – Smithsonian Magazine
Veja Também: A Tanga Vermelha da Gal Costa na Capa do Disco