Nunca vou esquecer a primeira vez que me deparei com The Sisters of Mercy. Era adolescente, e os vídeos da banda passavam raramente na MTV, sempre em horários estranhos, quase como se fossem secretos.
Cada clipe era mais sinistro que o outro, sombras se movendo, corredores escuros, luzes que piscavam. E lá estava ele: Andrew Eldritch.
A maioria das vezes, ele parecia fundir-se com a tela, vestido de preto e com óculos escuros, impossível de imaginar sem eles. No entanto, havia momentos em que ele surgia como um fantasma, como no clipe de “Dominion”, onde o terno branco tornava sua figura ainda mais marcante e imponente.
A sua voz cavernosa, profunda e hipnótica, parecia atravessar a televisão e se enraizar na minha mente. Eu ficava ansioso, como se estivesse prestes a descobrir algo proibido, algo maior que eu.
De Horários Secretos da MTV à Galeria do Rock
Minha história com a banda começou de forma predestinada. Consegui comprar o vinil de Vision Thing com o irmão de um amigo que trabalhava na Folha Ilustrada.
Esse mesmo amigo tinha gravado fitas K7 de Floodland e First and Last and Always, e eu ouvia repetidamente aquelas fitas, absorvendo cada batida eletrônica, cada nota de guitarra e a atmosfera sombria que Eldritch criava com tanta precisão.
Em uma visita à Galeria do Rock, encontrei uma fita de bootleg ao vivo que tinha “Gimme Shelter” e “Knocking on Heaven’s Door”.
O cover de “Gimme Shelter” superava o original dos Rolling Stones, um hino tão impactante que reescrevia o original em minha mente.
A versão de “Knocking on Heaven’s Door” pelo Sisters era lenta, apocalíptica e sombria, muito mais intensa e profunda que a versão enjoativa do Guns N’ Roses. Cada vez que eu ouvia, sentia que estava presenciando o mundo desmoronar em câmera lenta, e ainda assim, de forma bela e aterradora.
The Mission VS The Sisters of Mercy: O Controle Absoluto
A banda nasceu em Leeds, Inglaterra, em 1980, fruto da parceria entre Eldritch e Gary Marx. O nome, tirado de uma canção de Leonard Cohen, carregava uma ironia que só Eldritch dominaria: santidade e provocação, fé e sarcasmo, tudo fundido em uma identidade visual e sonora singular.
O primeiro grande racha, no entanto, veio com uma disputa de direção. O guitarrista Wayne Hussey e o baixista Craig Adams pressionavam por um caminho mais comercial, ao qual Eldritch se opôs veementemente. A cisão foi inevitável. Os ex-membros tentaram começar sob o nome The Sisterhood, mas Eldritch agiu rapidamente, lançando material sob esse mesmo nome para anular o uso da marca pelos dissidentes na justiça.
Forçados a escolher outro nome, Hussey e Adams fundaram The Mission. Eldritch recuperou o controle total do The Sisters of Mercy, reafirmando sua autoridade absoluta. Enquanto o The Mission conquistou sucesso comercial, o legado e a importância do The Sisters of Mercy permaneceriam inquestionáveis.
Floodland e o Apogeu Opulento do Gótico
Durante a produção do segundo álbum de estúdio, Floodland (1987), a baixista Patricia Morrison integrou a banda. Sua presença, embora Eldritch tenha gravado a maioria dos baixos usando a caixa de ritmos Doctor Avalanche, injetou uma nova estética imponente. O álbum inteiro respira um clima ritualístico e apocalíptico – faixas como “Lucretia My Reflection” carregam o peso gótico que definiu a fase de maior opulência do Sisters of Mercy.
Além da discografia oficial, a banda é marcada por versões lendárias que todo fã sério conhece, com destaque para “Temple of Love (1983)” e sua regravação de 1992 com a participação da cantora israelense Ofra Haza. Essa regravação não apenas introduziu toques orientais à atmosfera gótica, mas também provou a capacidade de Eldritch de reinventar a própria essência da banda.
A Agressão Industrial de Vision Thing (1990)
Vision Thing (1990), o terceiro álbum de estúdio do The Sisters of Mercy, representou uma guinada notável e mais agressiva na sonoridade da banda. Pela primeira vez, Eldritch incorporou uma formação com três guitarristas — o próprio Eldritch, Andreas Bruhn e Tim Bricheno —, buscando um som mais industrial e com guitarras mais pesadas para marcar o fim da Guerra Fria.
O álbum foi bem-sucedido comercialmente, mas não foi totalmente aceito pela crítica, que o viu como uma saída radical da opulência gótica de Floodland. No entanto, na minha opinião, embora Vision Thing possa não ser o melhor trabalho do Sisters of Mercy, não há discos ruins na discografia da banda. O álbum é excelente em sua própria proposta, entregando uma agressão focada e provando que o Sisters conseguiria transitar com maestria para a nova década sem perder sua intensidade hipnótica.
Doktor Avalanche e o Paradoxo de Andrew Eldritch
Andrew Eldritch rege a mitologia do The Sisters of Mercy com uma série de paradoxos. O controle absoluto é a primeira regra: desde 1980, o baterista oficial da banda é uma máquina de ritmos, creditada em todos os álbuns como Doktor Avalanche. Essa preferência de Eldritch pela perfeição robótica à imprevisibilidade humana cimentou uma identidade fria e singular para a banda.
Em contraste com sua aura sombria, ele se tornou o paradoxo definitivo do gótico: o homem que definiu a estética do gênero nega-o veementemente. Eldritch insiste que sua banda é humanista e modernista, e não gótica, diminuindo o visual icônico a pouco mais que “uma das nossas muitas semanas de roupas estúpidas”. Em um de seus comentários mais infames, ele chegou a declarar que há “músicas do The Carpenters muito mais góticas” do que qualquer coisa que ele já escreveu, demonstrando sua absoluta indiferença ao rótulo.
Essa aversão às categorias e expectativas se manifesta no seu desprezo pela indústria. O Sisters of Mercy, apesar de estar em atividade constante de turnês, lançou apenas três álbuns de estúdio, o último em 1990. Eldritch confirmou ter material novo, mas se recusa a gravá-lo, alegando estar ocupado demais ou simplesmente ignorando as demandas do mercado — um ato punk que desafia o modelo de consumo musical.
Essa postura culmina em seu mistério deliberado. Eldritch mantém um nível de reclusão quase inédito, evitando entrevistas e redes sociais. Ao permanecer sempre “se escondendo, saindo da câmera”, ele preserva a aura espectral e enigmática da banda. Em uma era obcecada por transparência, o gênio recluso de Eldritch prova que a longevidade do The Sisters of Mercy reside justamente em seu mistério inesgotável.
Discografia Essencial e Tesouros Ocultos
A discografia oficial do The Sisters of Mercy é notavelmente concisa, refletindo a relutância de Andrew Eldritch em lançar material novo. No entanto, sua trajetória é rica em singles e EPs que são cruciais para o entendimento de sua evolução.
Álbuns de Estúdio Oficiais
Apenas três álbuns em mais de 40 anos de carreira:
| Ano | Título | Observação |
| 1985 | First and Last and Always | Único álbum com a formação “clássica” (Eldritch, Marx, Hussey, Adams). |
| 1987 | Floodland | Álbum principal da fase mais gótica e opulenta (Eldritch e Patricia Morrison). |
| 1990 | Vision Thing | Último álbum de estúdio, com som mais industrial e pesado. |
EPs e Compilações Fundamentais
Muitas das músicas mais importantes da banda vieram de singles e EPs, reunidas na compilação Some Girls Wander By Mistake.
- The Reptile House (1980s EP): Lançamentos chave que definiram o som inicial, incluindo faixas essenciais do período pré-First and Last and Always.
- Some Girls Wander By Mistake (1992): Uma compilação fundamental que reúne os primeiros singles e EPs (como “Alice”, “The Reptile House”, “Temple of Love”), sendo o ponto de partida para a fase mais obscura da banda.
- Greatest Hits, Vol. One: A Slight Case of Overbombing (1992): Coletânea que inclui o icônico remake de “Temple of Love (1992)” com Ofra Haza, e o single inédito “Under the Gun”.
O Legado: O Disco de Tributo
O impacto do Sisters of Mercy se estende por diversos gêneros, especialmente o Metal Extremo e o Gótico/Industrial.
- O Tributo: Um dos tributos mais notáveis à banda é o álbum “A Tribute to the Sisters of Mercy – First and Last and Forever” (ou variações como The Sisters Of Mercy Tribute), onde bandas de peso do heavy metal e gothic metal como Paradise Lost, Cradle of Filth, Kreator e Crematory interpretam clássicos. Este tributo comprova a influência da atmosfera sombria do Sisters em todo o cenário do rock pesado.
A Essência Imortal
O The Sisters of Mercy transcendeu a classificação de banda para se tornar uma entidade cultural. Toda a jornada — dos bootlegs secretos da Galeria do Rock à manobra legal contra o The Mission — é um testemunho da teimosia e perfeccionismo de Andrew Eldritch.
Ele transformou a visão inegociável em poder duradouro. Amparado por seu baterista, Doktor Avalanche, cimentou uma influência imortal no cenário dark rock, cuja sonoridade apocalíptica e hipnótica ecoa até hoje em inúmeras bandas.
O legado da banda reside na intensidade da sua obra, não no volume de lançamentos. O Sacerdote, com seus óculos escuros, garantiu que a atmosfera do Sisters continuasse a dominar as sombras, eterna e inigualável.
Referências e Para Saber Mais
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Website Oficial do The Sisters of Mercy
A fonte primária de informações sobre a banda e agenda de turnês. -
Discografia Detalhada (Wikipedia em Inglês)
Lista completa de álbuns de estúdio, EPs e singles, incluindo posicionamentos em charts. -
Perfil de Andrew Eldritch (Wikipedia em Inglês)
Detalhes sobre o vocalista, sua aversão ao rótulo gótico e sua carreira. -
The Mission: A Cisão (SistersWiki)
Página dedicada à história da saída de Wayne Hussey e Craig Adams e a formação do The Mission. -
Documentário sobre The Sisters of Mercy e The Mission (1987)
Conteúdo histórico sobre a dissolução da banda e a rivalidade que se seguiu (vídeo do YouTube).
Leia também: Discografia Comentada do Cradle Of Filth



